"I am human and I need to be loved, just like everybody else does"

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Na calada da noite

As luzes cintilavam suavemente na rua, criando um jogo de sombras bastante misterioso e assustador. Era uma rua apertada, perdida no meio de labirínticas ruas onde em cada esquina espreitava um dealer ou uma puta, e nós caminhávamos os 3 à procura de quem vendesse um pouco de céu instantaneo, algo que nos mostrasse as estrelas e algum sentido na nossa vida perdida. As paredes estavam estaladas, e a tinta, quando ainda exisitia, caía aos poucos. De casas bastante degradadas, provinham gritos e choros. Aquelas paredes contavam historias de passados tristes e arruinados, de vidas perdidas, de loucuras insanas e prazeres descomunais. Elas viram a desgraça humana... Knock knock knock. A janela abre-se, e espreita uma rapariga dos seus 19 anos, magra e de cabelo bastante oleoso, com olheiras profundas:

- Tens da cena?

- neps puto, tou seca, hasta ai! -
respondeu ela

Continuamos por a rua a fora, onde se houve uma kizomba provinda de um bar decrépito e o som grave, longinquo, de uma musica pimba qualquer. Na rua brincam crianças, maioria negras, falando uma mistura de Português e criolo, que eu mal consigo entender. Passa por nós um indivíduo, soltanto um cheiro intenso, não de perfume mas de Haxixe. Usa um blusão, e por baixo, uma sweat com capuz. Apenas quando ele inpira o cigarro se ve um pouco da face dele. Os seus olhos reluzem em tons laranja e preto, um olhar diabolicamente surreal, reflectindo a ponta acesa do cigarro. Descemos então pela longa Rua dos Mareantes, e chegamos á baixa. Não se vê ninguém nestas ruas solitárias, apenas murmurios levados pelo forte vento que se faz sentir. Seguimos pela avenida, onde há mais animação. Por nós passa um grupo de pessoas mascaradas, e escondemos rápidamente os telemóveis. É necessario ter-se muito cuidado nestas alturas, e já me basta ter ficado sem um telemóvel o mês passado. O grupo passa e ficamos mais aliviados. Mais á frente, entramos no meio da multidão, chocando com pessoas mascaradas, bêbedas e fétidas, com quem aproveitamos para gozar e por incrível que pareça eles gozam consigo mesmo. Enfim, gente triste. Já sentados á beira do rio, ouvimos o pulsar forte das colunas das discotecas, parecendo trovoes constantes. A lua reflecte a sua luz no rio, tornano-o quase prateado, ondulando suavemente com os barcos dos pescadores por cima. Fumamos o cigarro, e pensamos o que iremos fazer amanhã. Falamos sobre a vida e como lamentamos tanta coisa. Temos perfeita noção que não será sempre assim. Não pode ser sempre assim. Já desanimados, o 'puto' puxa a corda dum barco, conseguindo puxar não um, mas dois barcos que estavam atrelados á mesma corda.


- Consegui! Vamos, corram, vamos salvar as nossas vidas! Andem, venham dar um rumo novo á vossa vida, vamos para além daquela linha, para além do horizonte, para além da lua e das estrelas! - Diz ele, com um sorriso ingénuo e malandro nos lábios.


-Cala-te puto, ainda não fumaste nada e já estás é com a moca. Deixa lá os barcos dos pescadores sossegados que o nosso horizonte é naquela direcção, para casa! - Digo, a sorrir, enquanto faço o meu melhor para esconder as lágrimas quase a esplodir dos meus olhos. Era tão bom que fosse assim tão fácil puto...


Vamos andando calmamente para a baixa, de mãos nos bolsos, sós e calados. Tá um frio de rachar e não convém fazer barulho por estas bandas. Deixamos a Keu em casa, e continuamos o caminho, eu e o puto, até á praça dos táxis.


- Puto vou apanhar o taxi para casa, ficas bem? vens comigo?

- Neps, ainda tenho que passar pelo bar do João. Porta-te, té manhã! -
Responde o puto virando as costas e continuando o caminho dele.


Entro no taxi. Aparentemente tive sorte, o taxista é simpático. No caminho fala-me de roubos que tem havido pela escuridão da noite, mortes, facadas e tiros, para aqueles que quizeram resistir.


- Não pense que quem entrega tudo aos ladrões é covarde, não senhor. Muitos já se armaram em herois e perderam as vidas.. verdade, verdadinha! - Vai falando o taxista.


Eu vou dizendo que sim, abanando a cabeça, enquanto ele fala sem parar. Estou distante mas não consigo deixar de achar graça aquela figura. Já careca, com uma boina na cabeça e um bigode branco muito farto, numa cara roliça e vermelhinha. Sinto um certo conforto por ter apanhado um taxista assim, e não um daqueles trombudos e resmungões que tantas vezes se apanha. Num instante chego ao meu destino, pago e ofereço o troco ao taxista, que agradece e me deseja que tenha uma boa noite.
-Isso já não sei se será possivel, respondo, sorrindo. Ele fica pensativo e eu fecho a porta do carro. Ele segue.
Chego a casa, já está tudo a dormir a estas horas. Trato da minha higiene pessoal, e deito-me rapidamente. Estou estafado. Ligo entao o Hi-Fi, programo-o para se desligar dali a 30 minutos, e ponho em repetição continua Distractions, dos Zero 7. Adormeço sempre a ouvir esta musica. Dou uma volta na cama e abraço-me a mim mesmo. E assim adormeço.